Era uma tarde de domingo, o sol se punha devagar, deixando o céu de um rosa muito intenso mesclado com o azul do infinito. Rafinha olha para o triciclo que ganhara no Natal e logo se entusiasma. Corre para o pai e pede:
- Papá, motoquinha...
O pai olha para o pequenino. Estava tão ocupado com contas do mês que não se encaixavam no orçamanento, mas não resiste. E quem resiste àqueles olhinhos brilhantes quase verdes? Larga a papelada na mesa e pega a motoquinha . Em uma mão segura o brinquedo e na outra o pequeno Rafinha.
Passam o portão e ganham a calçada. De um lado, a calçada quase vazia vira a pista de pedalar do caçula, o rapinha de tacho como chamavam o menino Rafael. O irmão de 10 anos, que desde o nascimento do pequeno era só dedicação, deixa seu videogame de lado e vai assistir ao irmãozinho pedalar. Até a irmã de 8 anos larga a Barbie na cama do quarto ao ouvir as risadas do pequenino, pedalando na calçada.
Alguns vizinhos esperam a noite sentados em cadeiras de fios plásticos olhando pro nada, tirando um trago ou pondo a conversa em dia. Uma televisão ligada em programa de auditório se ouve em uma das casas. Uma dupla sertaneja, no rádio de outra.
De repente escutam no meio daquele barulho corriqueiro um carro que vem descendo a rua muito acelerado. Todos param para ver de onde e quem vem, mas quando avistam aquele carro escuro, quase preto, ele já está ali, cantando pneu, subindo pelas calçadas. É uma correria só...mas o pior acontece.
Rafinha, que pedalava na calçada a uma distância do pai, é o único que não vê o perigo... ele continua pedalando e o carro chegando. O inevitável acontece. O carro atropela Rafinha, batendo em um dos pneuzinhos do seu minúsculo veículo de plástico. O tricilo rodopia, gira uma, gira duas, três vezes, e a criança cai na calçada.
Com a mesma velocidade com que chegou, o carro escuro se perde na escuridão da rua. Os vizinhos gritam, os pais e irmãos correm para acudir o pequeno que está desmaiado no chão. Alguém pede para outro correr e ver se anota a placa. O vizinho tenta e volta ofegante dizendo que não tinha placa no carro. E é só.
Ninguém mais consegue pensar direito. A vizinhança aglomerada sugere medidas para ver se o menino acorda. A mãe chora e o pai procura o celular para chamar por socorro. Rafinha continua imóvel, mas não tem nenhum ferimento. Aparentemente, apenas desmaiou.
O carro do Samu chega. Os paramédicos ouvem a história, examinam o menino e sugerem levar a criança para o hospital. Os irmãos mais velhos ficam com a vizinha, enquanto pai e mãe entram na ambulância atrás da maca que parecia tão grande para socorrer uma criança de 2 anos. Colocam soro, máscara com oxigênio e em poucos minutos já estão no Hugo. Apesar de não ter nenhum ferimento externo, nenhum osso fraturado, nem uma gota sequer de sangue, o menino teria que ser submetido a uma bateria de exames. E então, após algumas horas, os médicos anunciam o resultado: edema cerebral. Mas o sofrimento se amplia enquanto aguardam vaga em uma Unidade de Terapia Intensiva. O pequeno deveria ser mantido na UTI em coma para ver se diminuía o edema. A vaga no Hospital da Criança surge e Rafinha é transferido.
E os dias foram passando...o quadro do menino ficou estabilizado. Ele não piorava, mas também não dava sinais de recuperação. Até que o esperto e saudável menino não aguenta mais lutar pela vida. Ele se foi. Deixou uma família dilacerada. Deixou um bairro perplexo. De onde surgiu aquele motorista, que deveria estar alcoolizado para dirigir perigosamente em um bairro de periferia onde todos se conheciam?
Muita gente tentou ajudar, tentou achar pistas, mas nunca puderam identificar esse motorista, esse assassino que matou covardemente uma criança tão indefesa, tão pequena, com um futuro inteiro pela frente. Onde estaria este criminoso, que usou o veículo – criado para ser um meio de transporte- como uma arma para assassinar uma criança tão pura, um bebê ainda, cujo único sonho era acordar e brincar com seu triciclo na calçada...
Rafinha, hoje sei, que habita o Reino dos Céus, lugar que Deus disse que inocentes como você estariam quando desde mundo partissem. Você deixou um grande vazio em sua família – um trauma nos irmãos ainda crianças também e uma dor insubstituível em seus pais. Para eles, você sempre será lembrado...
Infelizmente para nossa cidade e nosso país você será sempre um dado estatístico que nos choca a cada pesquisa que é realizada sobre mortes no trânsito. A última que vi foi transformada em matéria no jornal O Popular e relata levantamento da Ong Criança Segura. Goiás ocupa o quinto lugar em mortes de crianças, a maioria por atropelamentos como o Rafinha- e mais outras cinco crianças que são mortas em acidentes de trânsito todos os anos. No Brasil são registrados 2,2 mil mortes de menores de 15 anos todo ano. Confira os dados da Ong em outros estados brasileiros:
1º Lugar – Tocantins – 11,6 mortes por 100 mil habitantes
2º Lugar – Mato Grosso – 7,3
3º Lugar – Paraná – 6,9
4º Lugar – Santa Catarina – 6,8
5º Lugar – Goiás – 6,1
6º Lugar – Distrito Federal – 5,6
7º Lugar – Sergipe – 5,5
8º Lugar – Espírito Santo – 5,1
9º Lugar – Alagoas – 5,1
10º Lugar – Mato Grosso do Sul – 5,1
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